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Budismo, meditação e cultura de paz | Lama Padma Samten

Lucidez em tempos de crise

Palestra de Lama Padma Samten no Teatro Hebraica, em Porto Alegre, dia 24 de setembro de 2017.
Eu imagino uma lucidez prática, o que fazer em tempos de crise. A questão da crise, na perspectiva budista precisa ser comentada. Essencialmente, se nós estamos no samsara, que é o mundo condicionado, o mundo ilusório, a crise é o próprio estado natural. Então, por exemplo, quando a gente fala em crise, a palavra crise introduz uma sensação de que existem períodos em que não há crise. Na perspectiva budista, o samsara em si é uma crise. Eu vou comentar brevemente isso, porque eu vou tentar convergir para um outro cenário que a gente poderia chamar de crise.
Na perspectiva budista, o samsara, essa crise básica, é originada por avidya. Avidya é a prisão da mente, é a operação da mente dentro de uma perspectiva menor, mais estreita, particular, onde a gente perde a visão ampla. A visão ampla hoje está tão oculta pela sucessão de construções que nós fizemos que fica muito difícil de apresentar o aspecto amplo, ainda que ele esteja incessantemente operando, mas é como se a gente não conseguisse mais ver direito, por isso precisamos de uma introdução àquilo. A nossa mente está treinada, ela está habituada a ver outras coisas, então a gente não consegue ver aquilo que naturalmente está em nós. Então, essa incapacidade de ver aquilo que é mais profundo e estável nos coloca dentro de uma circunstância na qual nós vemos aquilo que é transitório. E essa circunstância nos liga às coisas transitórias que parecem que são permanentes. Então, na perspectiva budista, o sofrimento é inevitável porque nós nos prendemos e começamos a operar a partir daquilo que não é efetivamente seguro e temos as frustrações sucessivas. Quando essas frustrações ocorrem, elas produzem sofrimento porque a nossa energia está andando de um jeito e aquilo se torna impossível e nós não temos mais como andar. Então, surge sofrimento.
Na perspectiva budista se usa a palavra apego também. Eu acho que é justo usar a palavra apego, mas por vezes a gente não tem essa sensação de apego. A gente tem a sensação de que a gente vive num mundo e que aquele mundo começa a desmoronar. Não é que a gente tivesse apego a ele, mas a gente sente o chão perdendo solidez e isso produz uma sensação de aflição. Então, acredito que uma das características desse tempo de agora, em que, como a gente diz, o próprio samsara entra em crise, não só nós temos a crise usual que é o próprio samsara, mas aquilo que nós chamamos de mundo ilusório, ele mesmo começa a se fragmentar. Então, isso é o outro nível de crise.
A gente pode ter, por exemplo, as dificuldades usuais como o Buda descrevia: a pessoa nasce, vive, envelhece, passa por decrepitude e enfim morre. Isso já é uma tragédia, num sentido de que a pessoa não consegue localizar aquilo que não nasce e não morre. Ela não consegue localizar. Então, avidya é isso: a pessoa perde o contato com essa dimensão ampla, ainda que ela seja inseparável dela mesma, a pessoa perde o contato, ela é incapaz de localizar. É como se ela estivesse vendo um filme e estivesse sofrendo no meio do filme. Mas a pessoa mesma não está em sofrimento. Existe um nível de avidya no sentido de que a pessoa começa a viver outra coisa que não é ela. Ela passa a sofrer com aquilo. Uma vez perdendo o contato com aquilo que ela é, ela sofre com o que ela não é. Então, nossa situação é um pouco essa: a gente começa a viver personagens, começa a viver histórias que não somos e a gente perde o contato com aquilo que somos. Por exemplo, acho muito interessante observar que nós podemos nos descrever hoje de um certo jeito, mas a gente já se descreveu de outros jeitos, de muitos outros jeitos. Nós também manifestamos nosso corpo de muitas formas diferentes e hoje a gente está com essa cara assim mais ou menos, que, enfim, a gente considera que é verdadeira. Não quero preocupar vocês, mas a cara vai piorando, a decrepitude é progressiva.
No meio disso a gente pode pensar: como é que eu sigo imaginando que eu sou isso e depois não sou isso? Porque afinal, hoje eu sou isso, mas amanhã eu não sou mais isso, eu sou outra coisa. Então, existe um centro que segue nos dando a sensação de ser, mesmo que as coisas sigam mudando. Esse núcleo que dá a sensação de existência a gente não consegue observar, a gente nem se ocupa muito disso, a gente não consegue nem viver à luz dessa característica, que é a característica central nossa, a característica geradora das outras. É o núcleo gerador das aparências, sustentador das múltiplas aparências. A gente opera a partir das várias aparências, que vão se desenrolando.
Eventualmente, nesses tempos virtuais como nós vivemos, a gente exerce diferentes identidades num mesmo dia, em diferentes lugares. As pessoas nos olham e a gente tem que cumprir um certo papel num certo lugar, um certo papel num outro lugar e a gente vai indo assim, mas nós não somos nada daquilo. Nós somos essa dimensão mais profunda que gera a multiplicidade de aparências. Essa dimensão é uma dimensão secreta, que a gente não consegue localizar bem o que seja. Na visão budista, se a gente não conseguir localizar isso, se a gente não conseguir viver à luz disso, a gente mais ou menos desperdiçou a existência.

A crise incessante

Avidya é a crise incessante, a crise da nossa existência vem dessa incapacidade de localizar o que nós somos. Nós nos localizamos a partir daquilo que nós construímos. Todo o aspecto construído dura um tempo e cessa. Isso produz o que é chamado de transmigração. Inevitavelmente nós transmigramos. Transmigração significa o quê? Hoje eu me manifesto de um jeito num lugar, mais adiante vou me manifestar de outro jeito noutro lugar. Eu acho isso muito comovente. Nessa perspectiva não há sossego possível. Eu acho que isso, no fundo, dialoga com a tradição semítica, no sentido de que nós buscamos a terra prometida em alguma coisa que seria final. Nós estamos transmigrando, sempre buscando a nossa face definitiva e a gente não encontra. Isso seria o problema básico da nossa vida: a ignorância de não vivermos a partir do aspecto primordial. O sofrimento é esse fato de que nós temos sempre que nos defrontar com coisas transitórias e nós somos obrigados a sair de um lugar para o outro. Existe uma imagem de que nós somos iguais a um pássaro pousado em um galho, inevitavelmente esse pássaro voará para outro galho, ele está condenado a transmigrar de galho em galho. Essa é a nossa situação. Então, a gente faz isso dentro de uma vida e, noutra perspectiva, a gente faz isso em vidas sucessivas também.
Então, tem esse mistério. Quem é que reencarna? Se dentro de uma mesma vida as identidades mudam, quando as vidas cessam o que segue? Ou mesmo dentro de uma própria vida, o que segue? De uma aparência para outra, o que segue? Esse é um ponto bem interessante. Como surge a individualidade e como que essa individualidade tem a sensação de se manter mesmo quando as coisas mudam e as características mudam? Então, essa é a crise geral, a crise budista existe desde o início da ignorância.

Originação dependente

A gente poderia perguntar: como tudo isso surge? As coisas surgem por originação dependente. Em algumas tradições o mundo foi criado. Mas na tradição budista o mundo segue sendo criado. Nós estamos em pleno gênesis. É assim: deus está vivo criando. Poderíamos pensar: “por favor, criador, dá um tempo, deixa a coisa estabilizar um pouco”. Mas ele segue criando. O ponto central da criação, na visão budista, é a originação dependente, criação dependente, que se dá pelo movimento da energia, pelo sopro. É mais ou menos assim: as pessoas colheram essas plantas, amarraram e colocaram assim nesse vaso. (aponta para as plantas no vaso). Então, quando isso foi colocado desse modo, tem uma energia que surge desse modo. Vocês vão ver que não é muito fácil outra pessoa chegar aqui, pegar o vaso e colocá-lo noutro lugar. Isso vai dar um estressezinho. Se alguém chegar aqui, cortar, der uma flor para cada um e sorrir, isso também vai dar um estresse. As plantas estão super livres, mas nós não estamos. Todas as coisas têm um sopro ou uma energia que as agrega. A gente diz: na dependência das plantas surgiu esse buquê, melhor deixá-lo ali direitinho como está, não mexer.
Esse assento do lama veio do CEBB Poa, ele se deslocou. Se antes do Lama sentar e falar, alguém pensar: “já que o trono veio eu vou levá-lo”, isso não pode. O trono está aqui, melhor não sentar, não olhar muito, porque é muito elevado. Melhor não botar o dedo. Quando terminar tudo, empacota e leva. As coisas são assim: dotadas de uma energia. Tudo está dotado de energia. Nosso corpo inteiro é dotado de energia. Por exemplo, a gente come as substâncias, que entram e vão passando pelo corpo. Elas passam pelo intestino e ganham um outro nome que eu não vou nem mencionar. E daquilo são retiradas as substâncias. De forma milagrosa, essas substâncias são substâncias químicas que percorrem o corpo e as células olham para aquilo e acham grande coisa, pegam e transformam em mais células e mais força para o nosso corpo. Olhem como elas são espertas. Há essa inteligência a nível molecular, a nível celular, que é capaz de pegar uma substância que não é célula e transformar em célula. É um tipo de aliança. Assim como a gente se junta para fazer uma coisa, eles são capazes de juntar aquelas substâncias para fazer uma certa coisa.
E essas substâncias todas na forma de célula começam a soprar com energia convergente criando e operando os tecidos, operando os órgãos e nós estamos aqui com essa cara mais ou menos. E nós também podemos nos juntar, como hoje. Esse encontro aqui é mágico, tem um tempo de duração, está todo mundo aqui por um tempo, tem uma energia que nos une aqui, tem um momento final em que todo mundo se levanta e vai embora. E se vai depois por que não vai agora? Não estou convidando ninguém pra ir embora. Mas por que não vai? Tem uma energia, tem um aspecto de energia que constrói as coisas. As coisas não são construídas pela matéria, são construídas desse modo sutil. Então, a gente junta as coisas e assopra, camada por camada e vai construindo.
Vocês podem imaginar esse prédio aqui, cuja energia se juntou a partir da comunidade de imigrantes, das pessoas, das famílias que foram vivendo aqui, que aspiraram por esse lugar. Com certeza coisas muito boas aconteceram nesse salão. Sempre há o tempo em que a gente olha e pensa: passou, agora é uma outra coisa. É maravilhoso entender como o olhar muda, e tudo muda. Então, a forma pela qual nós energizamos as coisas muda. Por exemplo, fotos de casamento. Quando aquilo não é mais um casamento, mas um ex-casamento, as fotos mudam. Não é mais um marido, mas um ex-marido. A foto perde o magnetismo ou ganha um magnetismo inverso. É muito incrível isso, eu acho isso notável. Então, essa energia se funde com a forma pela qual nós existimos. Tem esse magnetismo. Esse magnetismo é verdadeiro enquanto magnetismo, mas não enquanto os objetos que ele sustenta. Ele cria objetos que duram por um tempo. Por exemplo, os campeonatos de futebol e times têm pouco mais de cem anos. Antes disso ninguém sofria por futebol. Esse sofrimento é mais recente. As pessoas constroem coisas energéticas e é como se fosse uma brincadeira, mas daqui a pouco aquilo começa a ficar sério. Começa a ficar real, isso é originação dependente. É a energia que dá um sentido para aquilo. Tem um tempo em que aquilo cessa também. Os objetos perdem o magnetismo e surge a reciclagem. Esse é um ponto muito interessante.

A crise dos seis reinos

Existe a crise enquanto esse processo em que estamos imersos, que não nos leva a lugar nenhum, mas produz um conjunto de realidades transitórias e por vezes nós nos afligimos porque aquilo que a gente considera muito precioso e especial entra em crise, entra na impermanência, é muito comum, muito comovente. Eu acho muito aflitivo que nesse tempo o mundo político inteiro esteja se fragmentando. De um jeito ou de outro, as pessoas têm alguma conexão com a política, todo mundo vota e têm um conjunto de frustrações, aquilo tudo vai se fragmentando e nós não vemos uma base que impeça uma fragmentação. A gente não sabe para onde vai uma fragmentação desse tipo. Nós estamos na situação em que as pessoas acusadas e alguns até condenados estão julgando os outros. Não temos juízes isentos. As próprias pessoas implicadas é que estão julgando os outros. É uma situação de fragmentação total. Mas o samsara, mesmo que estivesse tudo funcionando direitinho, seria o samsara.
Os seis reinos, na perspectiva histórica budista, no tempo do Buda e mesmo no Tibet, também tem essa descrição. No reino dos deuses, por exemplo, onde está tudo bonito e iluminado, feliz, também é crise, porque, por exemplo, nós podemos estar num tempo feliz, mas esse tempo feliz não impede que ele seja sucedido por tempos problemáticos, então o tempo feliz pode nos amortecer, a gente fica olhando aquilo usufruindo de uma sensação de felicidade, amortecidos. Pode não ser uma boa coisa. Existe também o reino dos semideuses, de muita competição constante. Aparentemente o tempo da luta parece mais lúcido do que o tempo de todo mundo feliz. Existe também o tempo do esforço, o reino humano, todo mundo tem que fazer esforços para manter sua vida. Esse parece que é o tempo mais lúcido, afinal, todo mundo tem que fazer esforços, a vida não é fácil. Temos tempos em que não vamos fazer esforços, vamos viver fluindo e pronto. Parece mais lúcido. Tem o tempo daqueles que, fluindo assim, desembocam numa carência, eles têm uma sensação de falta, eles ficaram pra trás, eles têm uma impossibilidade em vários níveis, não conseguem avançar. Surge então o tempo dos infernos, em que as pessoas com essa carência têm uma sensação de que podem causar sofrimento para os outros, ganhar alguma vantagem com isso e viver a partir disso, predando os outros. De modo geral, no samsara, nós temos os seis reinos coexistindo. Então, as pessoas estão num tempo de alguma coisa, mas as outras estão num outro tempo e é um processo cíclico, as pessoas vão subindo e descendo e os seres vão se deslocando. Por vezes, quem está nos tempos dos infernos descobre um jeito de subir para uma condição melhor, começa a imaginar outras condições melhores e se transfere.

A crise da Roda da Vida

Tem pessoas, por exemplo, que podem estar no tempo dos deuses e da felicidade e migrar direto para o reino dos seres infelizes e em sofrimento. Esse processo é infindável. O Buda descreve isso, ele vai chamar isso de Roda da Vida, as pessoas estão girando dentro disso, isso em si mesmo já seria uma super crise. O que nós chamamos de crise, de modo geral, é uma coisa pequena. É uma desorganização dentro do próprio samsara, desorganizações por setores. Se a gente olhar com cuidado esses tempos de crise, vemos que eles são caracterizados por um estreitamento da visão, como se, por exemplo, o nosso olhar olhasse coisas muito estreitas, colocasse uma energia muito intensa em coisas muito estreitas. Eu considero que a noção de lixo, por exemplo, e a noção de destruição ambiental vem dessa estreiteza. Nós temos um objetivo, não olhamos as consequências daquilo e não arrumamos aquilo. É como uma criança em casa que simplesmente se movimenta, vai deixando as roupas em todo o lugar, deixa a geladeira aberta, resto de comida por cima de tudo, não faz uma manutenção, não tem uma harmonização no seu movimento. Isso vem da sua incapacidade de harmonizar, ela não olha de uma forma um pouco mais ampla, então, na medida em que perdemos essa capacidade e nos focamos vai surgindo a noção de lixo, por exemplo. Porque nós temos um certo movimento, a desorganização começa a se acumular, nós jogamos tudo para todo o lado. A gente não olha mais para aquilo e as coisas começam a se acumular.
O nosso movimento começa a produzir resíduos por todo o lado, começa a produzir dificuldades por todos os lados. O nosso estreitamento vai produzindo até mesmo uma linguagem específica: surge a noção de recurso. Nós precisamos de recursos para quê? Para impulsionar as nossas visões estreitas. A gente não está se movendo harmonicamente. Começamos a procurar coisas para um projeto que não tem um equilíbrio. Esses recursos inevitavelmente vão produzir resíduos, porque aquilo é usado, descartado e deixa de ser recurso, deixa de ser interessante, nossa mente vira em outra direção e aquilo começa a soprar.
Numa perspectiva das pessoas que têm uma reflexão sobre questões ambientais, elas vão dizer que o lixo efetivamente não existe, porque todas as coisas são úteis de algum modo, mas no momento em que não se consegue mais olhar para elas vendo-as como recursos, elas viram lixo. É como se fosse uma casa de adolescentes que estão morando juntos: dá muito lixo! Quando a mãe chega, ela bota tudo em ordem, lava, arruma. Surge a necessidade de uma visão mais ampla, mas a pessoa segue olhando desde uma visão mais estreita, ela come, joga fora aquilo e pronto.
Esse estreitamento da visão produz crises específicas. A gente olha as florestas, as montanhas, o ar, a água, os animais e tudo vira recurso, estamos com a visão bem estreita. É comovente. Isso vai dar problema. As pessoas também viram recursos. A gente ouve esse nome “recursos humanos”. A gente não pensa assim: “estou treinando as pessoas para serem mais felizes, nós todos precisamos estar melhores”. Eles treinam para a pessoa poder se encaixar dentro de alguma coisa, eu não quero saber o que ela é, o que ela pensa, para onde vai, quero alguém que “faça isso”, “se puder fazer isso, ganha tanto”, e “faz o que quiser com o dinheiro, mas das oito às dezoito faz tal coisa, o que faz em outro horário não importa, se você fizer isso está bem”. Daí as pessoas começam a adoecer. Daí surge um mundo como se o mundo fosse assim, o que vai dar problema, com certeza. Curiosamente, esses problemas são tratados como se fossem individuais: as pessoas se deprimem, se suicidam, se matam, as pessoas começam a ter vários tipos de crises que parecem individuais. Mas as pessoas podem não querer entrar nisso. A gente nota que é como se os jovens não quisessem entrar nisso, eles têm uma intuição de não entrar nisso, mas eles não têm um discurso que consiga explicar, e aparentemente não tem solução e eles vão ter que entrar. Eles vão ter que manter a vida deles, então isso produz um conjunto de obstáculos.

Consumo de drogas legais e ilegais

No caso da periferia urbana, como no Rio de Janeiro, no meio de uma guerra do governo contra o traficante, pensem: a força do tráfico não provém de uma propaganda que diz “tome droga, droga é muito bom”. Ninguém faz isso. No entanto, tem um super comércio. Quando os chefes do tráfico são presos ou mortos aquilo talvez nem altere o preço das drogas. Apenas surge um novo chefe. A força das drogas está no fato de que as pessoas consomem e as pessoas consomem por causa da ausência de sentido da vida delas. É como o álcool que é legal, mas já foi ilegal, como nos Estados Unidos, onde surgiu uma máfia e depois foi legalizado, foi aberto. O próprio governo não deu conta, foi legalizada a venda do álcool não porque o álcool não cause problema, o álcool causa problema, todo mundo sabe, mas foi impossível evitar isso, porque as pessoas queriam álcool também.
O desequilíbrio vai produzindo um apego às várias drogas. O álcool muitas vezes relaxa, as pessoas estão numa condição muito tensa no cotidiano, então elas tomam álcool como um psicotrópico para relaxar, do mesmo modo com outras substâncias, que são ingeridas por várias razões. Existe um tipo de artificialidade na vida das pessoas que é asfixiante, então, elas começam a escapar através das drogas. A gente vê isso pelo fato de que é praticamente impossível conter esse processo. E, na medida que fazemos esse esforço para conter, que é um esforço de transformar as pessoas em criminosas, elas se tornam de fato criminosas, e na medida em que são apertadas dentro disso, o próprio valor da droga sobe e paga para eles o risco de serem presos, etc. Na medida em que vão indo dessa forma, os jovens não têm muito lugar, não querem ser pedreiros como os pais ou faxineiras como as mães. Eles ficam presos dentro de ambientes muito difíceis.
Para botar os filhos de classe média na escola já é penoso, para as pessoas de periferia é mais difícil ainda. Eles não têm ideais, não tem tesão, não tem sonhos, terminam cooptados pelo fluxo financeiro que brota de outras regiões. Então, inevitavelmente nós pagamos pelos policiais e pelos traficantes. O que aconteceria com o comércio da droga se o consumo fosse interrompido por um mês ou um ano? Como eles iriam comprar as armas e os fuzis? Como fariam isso? Mas eles vão defender aquilo, porque nós estamos sustentando aquilo e estamos sustentando aquilo porque estamos desequilibrados.
Olhem, por exemplo, a indústria química. Nós compramos muitas drogas legais que são drogas para nos equilibrarmos. Nós olhamos a questão individualmente, nós não olhamos como um fenômeno de saúde púbica, não vemos o tamanho da crise de saúde pública e de desequilíbrio. Tratamos tudo pontualmente. Junto com isso vamos destruindo o ambiente, a água, as árvores, os rios, tornando impossível a vida dos outros seres. Tudo isso parece natural, parece que é a civilização andando, mas esse processo de funcionamento está nos matando, destruindo-nos psicologicamente, causando todos os conflitos sociais internos, isso vai nos levando a outros níveis de desequilíbrio.
Com esse esgotamento dos recursos vão surgindo alianças entre os países e entre as nações para poder acessar esses recursos. Hoje esse é um tema muito relevante. Se vocês observarem, os chineses estão fazendo acordos com países por todos os lados, comprando montanhas, comprando áreas extensas de agricultura, mantendo a economia se expandindo. Os países vão comprando os últimos lugares, gerando lixo, impactando os oceanos, o ar, esgotando as reservas de tudo. E nós vamos indo… E olhamos para a nossa vida e nós vamos adoecendo em vários níveis.
Importante entender que a insegurança urbana está ligada a esse fato. Ou seja, a nossa vida não faz sentido e nós entramos em crise. Então, dependemos da indústria química, dependemos de drogas legais e ilegais, oferecemos um mundo sem sentido para os nossos filhos, um mundo sem a capacidade de acesso a uma vastidão de pessoas. Essas pessoas se movem como podem e as tensões surgem inevitavelmente. Na medida em que os recursos se tornam mais escassos, nós precisamos de mais investimentos para obter os mesmos resultados. Os EUA passaram a prospectar petróleo na superfície e foram exportadores de petróleo. E aquele petróleo se esgotou. Foram importadores por longo tempo. Agora inventaram esse sistema em que eles estão explodindo o subsolo, juntando as reservas de xisto. Eles bombeiam e purificam. Eles se tornaram exportadores com esse processo altamente destrutivo para o ambiente, para as águas subterrâneas e para as estruturas do solo. Esse processo é muito caro e causa muito impacto ambiental. Se queremos produzir desse modo, precisamos gastar muito.
Aqui no Brasil as maiores hidrelétricas foram construídas e agora temos uma expansão na região amazônica e nas pequenas quedas d’água. Na região amazônica, é grande o impacto ambiental e social. Nós temos 250 gigawatt prospectados, mas não vamos poder usar isso porque o impacto é muito grande. O Brasil agora está comprando energia do Uruguai e da Argentina. Tudo começa a ficar mais difícil. Tudo exige mais investimento. Tudo o que a gente quiser usar custa mais investimento e mais investimento não é muito fácil de conseguir, pois significa mais trabalho, mais tempo para cada coisa, tudo mais difícil. Essa é a situação geral, não só no Brasil.

Sectarismo

Nos anos 70, isso foi estudado e as pessoas viram que o desenvolvimento com uma curva ascendente teria um patamar, por uma série de razões, ele chega a um topo, a um limite. Só que esse topo é muito temido pelos organizadores todos, uma vez que a disparidade de renda só se equilibra na medida em que cada segmento tem a sensação de que está expandindo e melhorando. Porém, se temos um topo, os vários segmentos tem a sensação de que não estão expandindo. E eventualmente aqueles que têm mais capacidade seguem expandindo em detrimento dos outros. E aí surgem tensões inevitáveis. Os resultados das tensões sociais desembocam em algum tipo de sectarismo. As pessoas tentam preservar privilégio: “aqui é minha família, o resto que se vire”. Eles dão nome para as suas famílias, nomes étnicos e de vários tipos e nesse processo de sectarismo, começamos a nos dividir.
A primeira e segunda guerras foram tempos de sectarismo horrível, surgiram visões de povos inteiros que começam a raciocinar de um certo jeito. Os judeus sofreram muito. E também diversas etnias. Nações se jogaram contra nações. Volumes enormes de esforço e inteligência se jogam desse modo. Não são guerras propriamente ideológicas, nós não tivemos guerra ideológica de fato. Tivemos a Guerra Fria, não tivemos um ataque dos países capitalistas contra os socialistas. Guerras sempre foram entre os países capitalistas. Todo mundo reza para o mesmo deus, têm a mesma pele e ainda assim se jogam uns contra os outros para se matarem. São todos europeus de olhos azuis. Eles se olham e sabem as diferenças. Muito comovente ver esse processo. Esse é o sectarismo. Essas guerras se sucederam. Mesmo nos tempos de agora nós vivemos essa tensão crescente entre os russos e os europeus, ucranianos e russos, que já foram as mesmas coisas, e agora se sentem diferentes. É o sectarismo: em tempos de dificuldade, as regiões se fecham e excluem umas às outras. Quando os tempos estão mais fáceis, todos se ajudam mais facilmente.
Há essa crise conjuntural, em que as coisas sobem e descem, e há o grande samsara, que é essa crise maior. Nas nossas vidas, temos crises ligadas ao desemprego, crises domésticas, crises com os filhos. O samsara é o mundo comum. Se o mundo comum estiver organizado é melhor. Eu pessoalmente acho que o samsara está mais organizado. Se a gente tiver muitas preocupações, muitas relações conflituosas, esses problemas nos desvirtuam do foco central. Por exemplo, se temos comida, abrigo e estamos mais ou menos bem talvez a gente consiga focar as questões centrais da vida. Mas se temos questões de segurança, comida e etc, a gente não consegue focar os problemas centrais, começamos a focar apenas essas coisas emergenciais, que não são as coisas centrais.
Eu acho superimportante que tenham boas escolas, boas estradas, todo mundo com banho tomado, com a cara boa, para então podermos olhar as questões profundas. Eu acho isso melhor. E então a gente precisaria ver como tratar disso individualmente e socialmente. No budismo, existem sugestões de como fazer isso. Sob o ponto de vista individual, a gente pode exercer essa compreensão de que todos os seres buscam a felicidade e buscam se livrar do sofrimento. Então, inevitavelmente, quando estamos em meio ao mundo é importante olhar para as pessoas e entender isso – elas querem alcançar a felicidade e se livrar do sofrimento. Essa é uma visão muito mais ampla do que a visão usual nossa que é “o que eu quero agora”, “eu quero isso e quero aquilo”. Dessa forma, vamos nos chocando com as pessoas. Se sou capaz de me colocar numa posição mais ampla e entender que as pessoas aspiram à felicidade e a se livrar do sofrimento, pode ser que a gente consiga se harmonizar com elas, temos uma linguagem mais fácil para nos comunicarmos com elas.

Geração de méritos como caminho

Se a gente se colocar no mundo como aquele que auxilia as pessoas a serem mais felizes e a escaparem do sofrimento tudo vai funcionar melhor para nós. Se nos colocarmos no mundo como aqueles que aspiram à felicidade a custa dos outros nossa situação vai piorar. Se a gente se colocar numa situação neutra e não ver o outro, ou seja, se a gente simplesmente atravessar e pronto, a nossa situação também não vai andar bem. Mas se a gente se coloca numa situação mais ampla, onde buscamos trazer benefício aos outros, nós vamos ser aliados. Os outros nos olham e nos protegem, pois nós os protegemos. Isso é geração de mérito.
O ponto central para quem quiser funcionar um pouco melhor no mundo ilusório é a questão da geração de méritos. Nós buscamos trazer benefício em todas as direções e nos movemos desse modo e pronto. Isso é processo condicionado. Mas esse processo se torna paulatinamente o nosso caminho espiritual. Por quê? Porque para nós pode ser fácil fazer isso em algumas circunstâncias, mas em outras encontraremos obstáculos. Não conseguimos ajudar dependendo de quem seja, pois nós temos estruturas cármicas. Começamos a observar esses aspectos mais profundos que estão presentes em nós e entendemos como os obstáculos cármicos terminam impulsionando ações que não são favoráveis e que vão trazer obstáculos para nós. Então, a gente continua olhando dessa forma: eu aspiro à felicidade e aspiro a me livrar do sofrimento e todos os seres buscam a felicidade e buscam se livrar do sofrimento.
A gente, olhando assim, nota uma certa direção de movimento, mas nem sempre conseguimos fazer os movimentos por causa das estruturas internas que percebemos, então isso dirige a um aprofundamento, a uma questão espiritual maior. Enquanto ação coletiva é a mesma coisa. Nós deveríamos entender que a ação coletiva, que a inteligência coletiva também deveria trazer benefício aos outros seres e deveria evitar o sofrimento. Então, as ações coletivas que têm esse objetivo prosperam e se sustentam. E as que são muito estreitas são combatidas e se chocam com outras mais estreitas produzindo conflito incessante. Então, essa é a base dos meios hábeis para andar no mundo em qualquer circunstância: nós nos movemos buscando trazer benefício aos seres. Esse é o exemplo do Buda. O Buda se moveu incessantemente trazendo benefício aos seres. O budismo tem vinte e cinco para vinte e seis séculos e se mantém. Não foi o pensamento sectário que manteve o budismo, mas foi o contrário, o Buda se manteve trazendo benefício de forma ampla mesmo em situações extremas.

Aprofundando o caminho: o exemplo da História da Ciência

Se nós entendermos algumas coisas mais sutis isso vai nos ajudar também. Por exemplo, o mundo externo surge inseparável do nosso mundo interno. Essa noção de “mundo interno” é super importante. Isso pode ser tratado de modo cognitivo, de modo emocional, de modo energético, mas o mundo interno sempre rege uma série de coisas.
O aspecto cognitivo a gente pode entender pela história da ciência. Na medida em que o mundo interno é de um certo tipo, tudo o que os cientistas veem como se fosse externo surge inseparável do seu mundo interno, então, quando o mundo interno muda, o mundo externo surge de um outro jeito. E novamente o mundo interno muda, e então o mundo externo torna a mudar. Eu acho isso muito maravilhoso. Por exemplo, a noção de que o mundo foi feito previamente em algum momento no passado. Tem outras visões como a visão de Hermes Trimegisto, uma visão egípcia. Eles dizem que o mundo não foi feito através das coisas que foram produzidas, mas o mundo foi feito através de leis. Então, surgiram leis sutis que operam sobre coisas e as coisas ganham aparência e o movimento que elas têm. Essa visão é muito interessante, foi a visão que gerou o surgimento da ciência. A ciência brotou dentro da visão de Hermes Trimegisto.
Tem aquele episódio do Newton, em que se diz que caiu uma maçã na cabeça dele e o Newton vê naquele fenômeno uma lei universal, que é a lei da gravitação universal. Ele percebe que todos os corpos se atraem no universo inteiro, todos os corpos se atraem instantaneamente. E do mesmo modo que a maçã cai sobre a cabeça, sobre a superfície da terra, a terra cai sobre o sol, mas o movimento dela impede que ela caia efetivamente. Surge a mecânica celeste. Isso não existia, as coisas simplesmente giravam como giravam porque foram feitas assim, e, de repente, a gente introduz a noção de que existem leis. Tem também as leis da mecânica que designam forças e como que as elas se relacionam entre si, como que são produzidas e como que a inércia se relaciona com a massa. Tudo isso são leis universais. Mas se vocês olharem para uma bíblia não consta a noção de lei universal que rege as coisas. Isso não está ali, isso vem de Hermes Trimegisto.
A noção de especular sobre como as coisas se produzem e evoluem teve uma tensão com o pensamento anterior. A ideia era assim: “se a bíblia não descreve aquilo, aquilo é totalmente inútil. Estamos perdendo tempo”. Mas depois vem uma visão que produz um outro tipo de mundo. E o encontro da ciência com a tradição antiga, com as tradições semíticas, foi um encontro traumático, porque eram visões incompatíveis.
A ciência avançou um pouco mais. No início, os cientistas consideravam que deus tinha feito as leis. E assim elas tinham criado o mundo. Então, deus não criou os objetos, ele criou as leis que criaram o mundo. Essa é a razão pela qual as leis são inflexíveis, mas as aparências do mundo vão se transformando sempre pelas leis. Muito interessante ver como que a partir das leis o mundo vai ganhando outras feições. Parece muito inteligível, mas quem é que fez as leis e sustenta as leis? Deus fez e sustenta as leis.
Num certo momento surge uma visão de que “deus é na verdade uma hipótese: uma hipótese desnecessária, porque enfim as leis funcionam, mas se deus sustenta ou não sustenta ninguém consegue comprovar”. Então, surge uma separação entre a ciência e a religião. Essa separação se estende porque surge a noção de objetividade, a partir da qual tudo o que é psicológico e filosófico vai sendo tirado de lado e substituído pelo experimento. Através do experimento, eu vejo se é ou não é, por que então eu vou ficar argumentando se é ou não é? Eu experimento e vejo, então a filosofia é inútil.
A psicologia, que vai tratar de como eu me sinto quando eu olho isso, é totalmente inútil dentro dessa visão. Se a psico tem alguma função é eliminar as emoções porque se eu olhar as coisas com emoção, eu estou me perturbando. Eu tenho que olhar de forma fria, universal, distanciada, esse é o olho verdadeiro. Então, a ciência começa a substituir todas as funções e vai relegando a segundo plano a psicologia, a filosofia, as religiões. No fim, vira tudo ciência. Hoje estamos com isso ainda. Estamos vivendo o fim desse período, ainda temos a sensação de que pensamos com o cérebro. Isso virou tão objetivo, tão objetivo, que existe a noção de apertar um lugar do cérebro e sair umas ideias. Isso também está passando.
Enquanto eu descrevo isso, eu descrevo como que os mundos surgem com as suas concepções e como que essas coisas vão se estabelecendo como verdades e como que essas verdades vão sendo substituídas por outras verdades. É assim. Então, na perspectiva budista isso são formas com as quais nós olhamos. Essas formas são sempre limitadas, são sempre baseadas em pressupostos, por exemplo, os pressupostos cognitivos que permitem explicar as coisas são uma base, mas nós temos pressupostos emocionais, pressupostos que movimentam a própria energia. Então, por exemplo, todos nós podemos ter sensações de realidade que brotam do nosso raciocínio ou do movimento da nossa energia, ou das nossas emoções. A gente pode ter essas visões, todas essas visões são consideradas visões construídas, limitadas, duais.
Nós vamos estudando esse aspecto em direção àquilo que é incessantemente presente, mas não tem nenhum pressuposto dentro. Então, a gente vai dizer que o Buda encontra isso no seu processo espiritual e o que ele ensina é justamente o fato de que a nossa natureza, o que há de mais profundo em nós, aquilo que está efetivamente livre das crises, não tem conteúdo. A medida que eu construo, eu escolho referenciais específicos e construo realidades. Essas realidades têm um tempo, têm uma duração, têm uma crise inerente a elas.
Então, esse mundo interno existe e existe na forma cognitiva, na forma de energia e na forma emocional. Quando nós nos valemos de um conjunto desses fatores e olhamos para as coisas, nós vemos a realidade de um certo jeito, então é super importante entender isso. O Buda vai dizer assim: se você tomar a raiva e o medo como base, tudo o que você vê em volta é o mundo dos infernos; se você tomar a felicidade como base, o que você olhar em volta é o reino dos deuses, se você tomar a competição como base, o que você olhar em volta é o reino dos semideuses. A gente vai trocando esses conteúdos e repentinamente tudo o que aparece em volta aparece com outra feição. Por exemplo, se eu colocar o medo como base eu posso pensar: “qual é a segurança que a gente tem de que não entre um grupo aqui e nos assalte a todos”? Eu não queria preocupar vocês, mas essa pergunta faz sentido. Deve ser uma pergunta dos infernos, então melhor nem pensar. Melhor ir para outro reino. A gente troca o conteúdo da nossa mente e surge uma realidade. A gente recebe a transmissão do conteúdo.

Cinco Sabedorias

O Buda então propõe cinco sabedorias do mundo interno que seriam melhores que orgulho, inveja, desejo/apego, ignorância, carência, raiva, ódio e medo, vamos esquecer essas, todas do mal. Vamos pensar quais formas seriam mais favoráveis para tomarmos como referência para nos movermos. O Buda vai falar sobre as cinco sabedorias, que estão ligadas às cinco cores. Vocês já devem ter visto as bandeiras budistas com as cinco cores. Aquilo está pendurado para o vento levar para todas as direções. Essas cinco sabedorias não são pessoais.
A primeira delas é a sabedoria do espelho. Vocês comparem: não é orgulho, não é inveja, não é desejo/apego, não é a carência, raiva, rancor, ódio, medo, não é nada disso. É a capacidade de entender o outro no mundo do outro. Isso é fonte de sair de qualquer crise, pessoal. Isso é muito profundo. Isso está ligado à própria noção de onisciência, pois, de modo geral, a nossa estreiteza faz com que a gente olhe toda a experiência a partir de nós mesmos e do que nós gostamos ou não gostamos. A partir da sabedoria do espelho, não estamos olhando assim. A mente pode fazer outras coisas. A mente pode se colocar no lugar do outro, entender o outro e como que ele está se sentindo. Isso é uma outra coisa, pessoal, isso não diz respeito a como eu quero ou gosto. A nossa mente é ampla, nós podemos operar desse modo. Se a gente opera desse modo, nós vamos ter muitas vantagens e mesmo que a gente não esteja pensando que vamos ter muitas vantagens acontece isso. Por exemplo, ninguém consegue namorar sem um pouco disso. Crise de namoro é incapacidade de ver o outro. A pessoa vai namorar para si mesmo. A noção “se eu gosto ou não gosto desse namoro” não vai dar certo.
Se a gente olhar para o outro e usar também a sabedoria da igualdade, aquilo que for bom para o outro também nos alegra e é uma super riqueza. Chagdud dizia que isso é a base da riqueza; nós nos sentimos ricos, porque nós não nos alegramos apenas com aquilo que acontece conosco. Nós somos capazes de nos alegrar com o que acontece com os outros. Nossa vida se enriquece. A gente pode se alegrar com as montanhas, com o sol, com a lua, com o mar, com as florestas, com o ar, com o céu azul, com as estrelas.
Quando a gente se alegra desse modo, a gente não precisa de posses. Quando as pessoas estão bem, a gente se alegra. Se as árvores estão bem, a gente se alegra. Nos alegramos com os animais, nas várias direções; nos alegramos com as crianças, com os adultos, com os velhos. Nossa mente é mais ampla, capaz de chegar no outro e se alegrar com o outro, com as várias coisas.
Vocês olhem a estreiteza da mente quando a gente se restringe ao que acontece conosco e fica escolhendo o que gosta e o que não gosta. Uma situação super difícil. A sabedoria do espelho, que é a cor azul, e a sabedoria da igualdade, que é a cor amarela, transformam a nossa vida. Se estamos num lugar favorável ou desfavorável, mas começamos a operar a partir dessas sabedorias, nós temos a capacidade de melhorar consideravelmente as nossas vidas.
Essas sabedorias brotam de uma base que não tem referenciais. Por exemplo, a base com referenciais produz a sensação de um eu, mas quando eu estou entendendo o que está acontecendo com o outro, onde é que o nosso eu se coloca nisso? O nosso eu não se coloca, nós estamos olhando desde um lugar livre. Nós fazemos um exercício de liberdade com relação a esses conteúdos justo pela capacidade de se colocar noutras posições. Essa capacidade de se colocar noutras posições é o exercício natural da liberdade da base que não tem em si mesma identidades, escolhas ou referenciais originais. Numa visão com outra linguagem, é como se a construção da nossa identidade se desse por escolhas e essas escolhas são artificiais, transitórias, mas atrás disso existe uma base divina, transcendente, extraordinária, que não é nem individual. Dessa base, brotam as sabedorias que nós podemos manifestar mesmo em meio ao mundo das condições.
Se diz que os Budas manifestam as cinco sabedorias. Essa é a mente deles. Como que funciona a mente de um Buda? Ele não pensa “isso eu gosto, isso eu não gosto”. Ele entende os seres no mundo deles. Ele move a sua energia e ajuda os seres a mover sua energia a partir da igualdade.
Tem também a sabedoria discriminativa, que entende como que os mundos limitados são limitados e como a impermanência vai inevitavelmente ocorrer. Isso nos ajuda a superar a sensação das identidades presas a escolhas que estão inevitavelmente condenadas a se fragmentar e a desaparecer. Quando nós entendemos isso, significa que nós estamos num lugar livre olhando as construções. A gente vê as construções subindo e descendo, que são como ondas que surgem e se dissolvem. O princípio ativo das ondas é a própria energia da base. O mundo não condicionado pode produzir as múltiplas construções, mas as construções se elevam como as ondas e cessam também. Então, essencialmente a sabedoria discriminativa entende isso.
Tem também a sabedoria da causalidade, que nos ajuda a entender como que as ações de um certo tipo vão produzir problemas para nós e para os outros e como que as ações de um outro tipo vão produzir vantagens. Essa sabedoria é uma sabedoria que brota da base também. Como nós estamos presos a referencias construídos, como por exemplo um jogo de tabuleiro, um mundo surge através de referencias construídos. No meio desses referencias construídos, a gente pode ter uma sensação de realidade, até mesmo de perda de felicidade. Quando estamos presos dentro disso o sofrimento é inevitável.
A sabedoria da causalidade é quando a gente vê que certas ações produzem resultados favoráveis e outras produzem problemas. Por exemplo, se eu me colocar trazendo problemas para os outros, vou trazer problemas para mim também; se eu me colocar ajudando as pessoas a buscar a felicidade e a ultrapassar o sofrimento de formas mais sutis e menos grosseiras, isso é melhor.
Dentro da sabedoria da causalidade tem quatro formas de ação. A primeira delas, que a gente treina na meditação é a capacidade de não se perturbar diante do que surge. A perturbação é nós presos dentro do jogo. Ação de poder é quando nós somos capazes de não nos perturbarmos e de olhar de um jeito amplo. As coisas surgem e cessam, mas algo segue por baixo. Nós estamos ligados àquilo que segue e não àquilo que sobe e desce. Isso é o que nos faz trazer tranquilidade. A ação de poder é a capacidade de não ser atingido por aquilo que acontece. Se nós temos essa capacidade, nós podemos agir de forma lúcida. Se nós somos atingidos, nós estamos presos.
Uma vez eu vi, nas lutas marciais dos japoneses, um mestre ser desafiado por um jovem lutador que bateu nele e foi embora. Os alunos então disseram ao mestre: mestre, acho que estamos perdendo tempo em seguir com o senhor. E o mestre disse que estava fazendo uma demonstração para eles: “numa luta privilegiamos o bater, mas existe o contentamento de não se perturbar ao ser atingido, vocês entendem?” Isso é superimportante. Isso é sabedoria de poder. Nós estamos iniciando lá no CEBB um método em que todo mundo tem que apanhar bastante… Estou brincando, não é preciso criar isso. Todo mundo já é batido o tempo todo. Não precisamos criar confusão nenhuma porque ela já existe. Então, nós temos as oportunidades de ser atingidos e nos mantermos, de manifestarmos sabedoria de poder.
O ponto seguinte seria a sabedoria da ação tranquilizadora, ou seja, acalmar os outros. Primeiro nós não nos perturbamos e depois acalmamos os outros. Na sequência, porque não estamos perturbados e conseguimos acalmar, a gente olha os outros e vê qualidades que conseguimos irrigar para aquilo andar melhor. De repente, está tudo organizado de novo, a confusão passou. É como a sala de aula. O educador vai precisar usar esse método. Ele chega e está uma confusão: primeiro, ele não pode se perturbar ou desistir, ele não pode sair correndo, ele mantém o equilíbrio do jeito que for possível. Manter o equilíbrio significa não se perturbar, depois acalmar, depois irrigar as qualidades positivas de um e de outro.
Por fim, tem a ação irada. A ação irada é evitar que as ações negativas prosperem, é uma ação compassiva irada, porque se as ações negativas prosperam, elas vão dar muito problema. Por exemplo, um cirurgião, ele vai ter que cortar, furar, serrar a pessoa. Aquilo pode não ser bom, mas salva a vida da pessoa. A pessoa abre uma artéria e enfia um cateter que vai até o coração, bota um parafuso e o outro vive. Ou então serra, bota o coração para fora, corta tudo, bota numa máquina, troca as veias, as válvulas, costura, bota para dentro de novo, costura a pessoa. Não é incrível que a pessoa conseguiu abrir o outro inteiro e ajudá-lo? É uma boa coisa.
Isso é ação irada, não é uma ação contra o outro, é uma ação a favor do outro. Hoje ninguém mais vê um cachorro atacar um ouriço. O cachorro fica todo espetado. Tem que amarrar o cachorro e tirar o espinho. Mas ele não gosta. Vocês não queiram saber o que é isso. Isso é uma ação irada. Uma ação compassiva, que seria deixar o bicho agonizando, não tem como. Ação irada é amarrar o outro todinho e tirar os espinhos.
E tem a cor branca, sabedoria da natureza primordial, que não tem esforço, que está incessantemente presente, é o aspecto profundo de nós mesmos. Na perspectiva budista, sair da crise é poder operar essas cinco sabedorias. Se a gente não tiver essa oportunidade durante a vida, é como se a gente estivesse passando pela vida sem olhar o ponto essencial. De modo geral, nós, dentro do samsara, só olhamos as coisas externas, não chegamos a olhar o mundo interno como inseparável das aparências externas.

Mundo interno e ação no mundo

Nós podemos cultivar um mundo interno que então produz uma forma de visão e ação específica vitoriosa, favorável em meio ao mundo. A gente não consegue entender isso, passamos uma vida e sucessões de vidas sem nos darmos conta disso. A gente vai operando como se fosse muito inteligente. A gente simplesmente vai reagindo às coisas, reagindo com vivacidade às coisas, crise certa.
Eu acho que os tempos de degenerescência são os melhores tempos para o budismo, porque o budismo trata da gênese de como as realidades surgem. Quando nós temos um tempo favorável, estamos amortecidos, não temos a tendência a pensar ou refletir. Um pouco de dificuldade termina nos ajudando a focar as questões mais profundas. Se a gente repentinamente encontra um lugar muito tranquilo, a gente se amortece, se acalma e perde tempo. Então, algum nível de crise é favorável. A crise, como está estabelecida hoje, está de bom tamanho. A crise revela o aspecto onírico dela, o aspecto luminoso dela.
As coisas, na verdade, estão todas abertas. Nós podemos simplesmente nos levantar e construir os mundos favoráveis. Nós não somos prisioneiros daquilo que está ao redor. A nossa prisão está no nível sutil, porque não conseguimos viver de outro modo. Como, por exemplo, a pessoa torce por algum time da série B e acha que está na série B. Mas a pessoa não está na série B, mas se sente. E tem outros que estão em sofrimento disputando a Libertadores, o campeonato mundial, a visão limitada é isso. É o mundo sutil contaminado, o samsara que invade essa dimensão sutil. Nós estamos operando e parece que o mundo inteiro é isso, abrimos os jornais e é isso, ligamos a TV e é isso, mas não é isso, se a gente se levanta e começa a se mover as coisas estão abertas.
Mesmo as fronteiras econômicas não são sólidas. As mentes das pessoas têm um mobilidade, se a gente se dirige às pessoas além das fronteiras, elas respondem além das fronteiras. Existe uma comunicação, existe um processo. A compaixão é um processo desse tipo. A compaixão não é um julgamento. Por exemplo, um juiz julgando um processo não tem espaço para compaixão, porque o julgamento está delimitado por o que aparece no processo, mas nós podemos manifestar compaixão. Podemos condenar as pessoas e depois de um tempo mudar isso, surge compaixão pela pessoa: “eu me enganei, ela fez aquilo como todos fazem, perturbados todos fazem, não preciso ter raiva dela”. Compaixão é um atravessar das regras, atravessar das fronteiras e das barreiras todas.
Então, é possível: podemos manifestar amor, compaixão, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria em todas as direções, independente das paredes e das aparências que as coisas têm. Nós podemos nos dirigir desse modo às pessoas e elas começam a responder desse modo também. Esses são os mundos verdadeiros. Mas de repente vamos nos desestruturando dentro de papéis, criamos mundos rígidos e pensamos que precisamos obedecer àquilo, mas não precisamos, pois são mundos fabricados, não são mundos reais. O mundo que atravessa as fronteiras, que atravessa as limitações é o mundo verdadeiro.
 
Transcrição: Cristiane Martins
última revisão: 2 de janeiro de 2017, por Stela Santin

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